domingo, 20 de junho de 2010
JOÃO PARA ALÉM DO QUINTAL
Acordou determinado a ir até um lugar onde nunca esteve, um lugar que jamais pensou. Seguiu para além do quintal, tomou estradas proibidas, atravessou céus e abismos irrompendo para além do “disso ou daquilo” até chegar a um lugar que simplesmente não existia, ao tempo de todas e de nenhuma hora. Sentiu seu corpo e sua alma, toda a natureza e também o que é sutil ou escapa aos nossos sentidos como uma só manifestação de vida. João percebeu a luz nos sorrisos das crianças, a liberdade no canto de pássaros, o elixir das plantas, a coreografia dos astros. Ele se viu como fauna, uma espécie de macaco, não mais como uma caricatura de algo supremo, aboliu sua escravidão da culpa e da morte. João foi para um lugar que simplesmente não existia onde desenvolveu a habilidade de ver a beleza e não mais envelheceu...
sábado, 19 de junho de 2010
O ABSURDO FIM DE NETO
CAPÍTULO I - SEM NENHUM
MOTIVO APARENTE
Foi em uma noite
qualquer, ele voltava do trabalho afobado e embriagado de cansaço, cortando uma
escura ruela, só pensava em suas horas de descanso: “Quero um banho, comer algo
e cair no sofá, assistir o noticiário, ficar sabendo tudo sobre o campeonato. E
depois, quem sabe, chegar até o bar, beber uns goles e me desligar com qualquer
jogo que estiver rolando na TV. Com sorte, após o jogo, ainda vou encontrar
alguns amigos e me divertir no bilhar ou nas cartas...”.
Deliciava seu cigarro
de todas as horas quando, subitamente, o deixou cair e correu para trás de uma
caçamba de lixo. Sentia muito medo, apertava os olhos, ofegava, os joelhos
batiam, dentes rugiam, todo seu corpo tremia. O pavor esmagava seus sentidos, chegou
a urinar nas calças! Desejava não existir, queria simplesmente desaparecer. Ele
reuniu migalhas de coragem e abriu lentamente os olhos, as esferas pretas
giravam entre suas pálpebras entreabertas, o terror dominava seu espírito
encarnando em suas expressões. Olhou ao seu redor e tudo estava normal, a ruela
era a mesma de todos os dias, cada detalhe esculpido pelos anos de miséria
estava exatamente onde e como deveria: tudo absolutamente normal.
Contorcido e apavorado
assistia tudo se distorcer por continuar exatamente como sempre foi: as
pichações, buracos no asfalto, grades tortas, casas em ruínas, canteiros
tomados pelo lixo, bueiros fedidos, o velho caminhão baú abandonado que há
meses servia de morada para mendigos. Até o som tinha o mesmo ritmo: ecos de
buzinas, motores e sirenes, o mesmo ininterrupto ronco triste de todos os
dias... Estava com demasiado medo e sem nenhum motivo aparente.
Esquecer o pavor pela
normalidade! Era tudo que imaginava, era só o que queria quando percebeu um
espectro animalesco à sua frente, o homem fixou os olhos no vulto: era um ratão
com a cabeça ensanguentada, sustentando-se sobre as patas traseiras. Era
impossível sentir mais medo, entretanto ele se familiarizou com o animal, e
isso lhe pareceu ainda mais assustador. Ficou encarando o ratão por alguns
segundos até notar os olhos brilhantes voando por baixo do caminhão baú, eram
diabólicos e aproximavam-se cortando a escuridão como raios. O ratão olhou
rapidamente para trás, saltou e correu na direção do temeroso homem. Ele sentiu
a adrenalina percorrer suas veias junto ao medo e mais que o próprio sangue.
Levantou-se acelerado e como se fosse chutar todo o seu tormento, golpeou o
focinho do ratão que decolou voo de costas e terminou agarrado pelo dono dos
olhos diabólicos, um elegante gato preto que em um salto certeiro cravou os
dentes na nuca do roedor. O felino pendia a cabeça para baixo, seus olhos
flutuavam incandescentes de satisfação. Ele retirou-se caminhando de fasto, sua
pelagem negra se fundia lentamente à noite enquanto ele arrastava com
dificuldade o cadáver do ratão esguichando sangue e se retorcendo em espasmos
fúnebres.
CAPÍTULO II – JOÃO
DONIZETE MENDOÇA NETO
O homem ficou tão feliz
por finalmente ter aplicado um golpe certeiro que por alguns instantes se
esqueceu do medo. Contudo, já na esquina seguinte, voltou a caminhar trepidando
e com os pensamentos atordoados, seguia pelos cantos, estava ofegante e olhava
com desconfiança ao redor, durante todo o resto do caminho até sua casa ele
tentou, em vão, recolocar o que ocupava seus pensamentos antes da sua alma ser
violenta.
Estava em casa, naquele
dia até parecia um alívio, era o velho Neto de sempre: “_Agora posso descansar
e esquecer esse medo misterioso”, disse enquanto tirava os sapatos ainda na sala.
“_Quer esquecer não é
vagabundo! Você tem é que pagar pelo menos um mês das contas para não ficarmos
sem água e no escuro”, gritou do banheiro sua mal amada e carrancuda esposa
Madalena.
“_ Neto! Estou falando
com você!”, insistia...
Eles não se tocavam, há
anos viviam se maldizendo aos berros, proferindo palavrões inescrupulosos e até
mesmo criativos, conversavam apenas o necessário e muitas vezes nem isso. Ela
extremamente fogosa, revoltada e dominadora, ele impotente, conformado e
submisso. Encaixavam-se de uma forma tão anormal que deveria ser isso que os
mantinha acomodados no inferno daquela vida conjugal.
“_ Neto! Estou falando
com você!”, aquela voz irremitente ressoava pela casa atingindo seu espírito
como agulhadas no tímpano. Ele ligou a televisão e desmoronou em silêncio na
poltrona... As horas voaram, o vento frio trouxe uma madrugada mergulhada em mistérios.
Neto, tomado pela insônia, estava pálido e tremulo, ainda tentava compreender
seu medo. Ardia em calor insuportável, suava doentiamente olhando para a
televisão, que assim como ele, chiava e estava fora do ar.
Madalena se arrastou
sonolenta pelo corredor, foi até a sala e pegou o cobertor no sofá ao lado da
poltrona. Ela nem notou o estado deplorável de seu marido: “_Não se esqueça de
pagar as contas seu imprestável!”, disse já de volta ao quarto, antes de fechar
a porta e passar a chave. Neto tentou ficar de pé, entretanto teve de ir
engatinhando para seu quartinho improvisado na dispensa no fundo do corredor
onde submergiu no medo até adormecer junto a pesadelos psicodélicos: estava
novamente uniformizado na escura ruela e corria o mais rápido possível. Logo
percebeu que não era ele, e sim toda a ruela que se movimentava, mesmo suas
pernas se movendo como as de um velocista nunca conseguia sair do lugar. Quando
chegava o fim, a ruela recomeçava... Isso ocorreu sucessivamente e cada vez
mais rápido até todo o cenário não passar de imagens vistas da janela de um
veículo em alta velocidade. A ruela estava assustadoramente além do tempo e do
espaço.
Neto acordou ainda mais
confuso, foi o pesadelo mais estranho de toda sua vida, tentou interpretá-lo,
mas foi impedido pela dor, os ossos e músculos ardiam como se recebessem
marteladas. Ele acendeu a luz do abajur e viu seus dedos, a mão e o braço
afinando lentamente, tudo com algumas moitas asquerosas de pêlo. O desespero
foi ainda maior que a dor, Neto se esbofeteou e se beliscou diversas vezes:
“_Deus, só posso ter sonhado que acordei! Não é possível!” , não estava mais
dormindo, ouvia nitidamente suas palavras, vergões ergueram em seus braços, o
rosto ardia e do canto de sua boca escorreu uma tímida gota de sangue. Ao se
limpar com sua mãozinha notou seu rosto todo inchado, pêlos longos e
pontiagudos roçam em seus dedos pálidos. Os olhos saltavam para fora, as
orelhas arredondavam e se moviam como nunca.
“_Não é possível!”,
gritou!
Sentou-se na cama, a dor
foi tamanha que soltou um terrível berro. Observava seu corpo sofrer uma
transformação bizarra: diminuía à medida que fica peludo... Só após uns dez
minutos de dores latejantes e mais de trinta berros, Madalena se levantou e foi
vê-lo, a mulher estava enfurecida e praguejou duas vezes a cada passo. Ao abrir
a porta ela instantaneamente desmaiou... Antes mesmo do fim do eco do estrondo,
ela recobrou a consciência e saiu aos prantos, serpenteava corredor afora como
uma sucuri com um homem no bucho. “_Socorro mãe! Socorro, um monstro, socorro!”
Sua mãe morava na casa ao lado junto com o marido, os dois cochilavam em frente
à TV de plasma que ostentam graças à sorte em um sorteio de supermercado. No
espaço de tempo possível o velho, padrasto de Madalena chegou ao quarto de Neto
armado com um pé de cabra. Ao vê-lo Neto murmurou com timbre animalesco: “_Por
favor, Paulo! Ajude-me! Devo ter contraído uma doença terrível! Apesar do
estado assustador e lastimável sou eu, Neto! Por favor, ajude-me!”.
Paulo aproximou olhando
com indiferença e em poucos segundos saiu a passos largos. Neto pôde sentir o
cheiro de medo exalando daquele velho rancoroso. Em seguida Paulo voltou com
sua esposa, ainda armado com o pé de cabra.
“_Nunca vi algo tão
assustador!”, exclamou a velha: “_Só pode ser obra do demônio!”. Tudo que era
desconhecido e assustador aquela mulher nomeava como obra do diabo, do capeta
ou do demônio. Mas nesse caso não era para menos, ela assistia uma espécie de
mutação enquanto algo que lembrava ser seu genro agoniza na mais inebriante das
dores, a velha saiu chamando por Jesus e todos os santos...
“_Espera Neuza, sou eu,
ajude minha sogra! Preciso muito! Abaixa isso Paulo! Estou ferrado cara, por
favor, devo estar morrendo homem!”
Paulo manteve a
habitual frieza no olhar e saiu lentamente, dessa vez andou de fasto com os
olhos impiedosos pregados em Neto e com o pé de cabra em punho. Tirou a chave
da porta e a trancou por fora.
CAPÍTULO III – O PIOR
CEGO
Depois de horas de
sofrimento a dor se esvaio, contudo a mutação prosseguia junto com incertezas
pavorosas, então Neto entrou em uma espécie de transe, era como se estivesse à
beira de um coma alcoólico: permaneceu imóvel, deitado de costas olhando
fixamente para teto cinza e cheio de infiltrações. A porta se abriu, era sua
mulher, ele sabia apenas pelo tamanho do vulto, madalena espiou, gritou e
bateu... Alguns segundos... A porta voltou a se abrir, ela entrou com metade do
corpo e agachou com a dificuldade de sempre e deixou algo no chão, levantou-se
com maior dificuldade ainda enquanto já foi fechando a porta...
“Eu aqui ferrado há
horas e você me ignorando sua maldita vadia barriguda! Deus! Nem eu faria isso
com você!”, ao tentar gritar percebeu que apenas pensava enquanto emitia um som
animalesco por entre os dentes... A partir daí passou a recobrar o controle
sobre seu corpo, piscava e movia o pescoço com cautela, enxergava seu nariz
inchado, todo seu corpo quase completamente coberto por pêlos. Seus braços
estavam curtos, finos e com movimentos restritos, as pernas naturalmente
encurvadas. Era terrível e indecente, seu corpo possuía uma forma tão estranha
que o lançou em um estado reflexivo onde passou a tecer teorias absurdas: “Já
li algo parecido em um dos livros que comecei... Não me lembro qual... O cara
sofreu uma mutação parecida com a minha, ou seria uma metamorfose?”, verdade
era que Neto nunca chegou ao fim de livro algum. Sabia que o livro era um
clássico, lembrava do personagem Gregor, mais não tinha certeza de qual era o
nome do livro e não fazia idéia de quem era o autor. Ele havia desistido de ler
ainda na primeira página, no quarto parágrafo, quando o Gregor pensava: “...
que acontecerá se eu continuar dormindo um pouco mais e me esquecer de todas as
fantasias?”. Ainda buscando explicações: “Não posso ser um lobisomem com esse
tamanho ridículo!”, Neto gargalhou melancolicamente, um grunhidinho besta. Seus
pensamentos eram apenas tentativas fúteis para explicar sua transformação, tudo
flutuava junto a devaneios no zepelim assombrado no céu do seu próprio vale das
sombras.
Ele se virou de barriga
para baixo na tentativa de equilibrar sobre suas, agora, patas, passou a se
arrastava lentamente para fora da cama, e ela nunca foi tão grande. Ao olhar
pra trás viu um longo rabo sem pelos. Fechou os olhos, tentava exaustivamente
esvaziar sua cabeça do inexplicável, ao abri-los notou que estava enxergando
apenas duas dimensões e em preto e branco, gritou por socorro: emitia
grunhidos. Então se jogou ao chão e rolou tremulo para debaixo da cama onde
permaneceu por horas.
Era um belo e raro
final de tarde na cidade acinzentada, cheio de luz e mistério, a claridade
deslizava pelas frestas da janela e escorria por todo o quarto ofuscando o todo
confuso. Diante a luz Neto ilusoriamente voltou a acreditar se tratar apenas um
pesadelo, ele queria acordar e estava disposto a esperar até acontecer, mesmo
que sua vida fosse um sonho maligno do qual acordaria para a morte. Entretanto,
a covardia foi derrotada pelos instintos, a audição e o olfato estavam muito aguçados,
o cheiro de fome estava por toda parte... Neto saiu sorrateiramente de seu
abrigo, dominava o novo corpo, a mutação física estava completa, mas ele ainda
não foi capaz de assumir no que havia se transformado.
Ele olhou ao redor e
vislumbrou um pedaço de queijo meio podre, era o maior desejo de toda sua nova
existência. A humanidade secava, os pensamentos se perdiam, entretanto ele
ainda foi capaz de notar que o queijo havia sido banhado em um líquido gosmento
e inodoro... Lembrou-se do veneno caseiro contra todas as pestes que comprou há
algumas semanas: “Aquela piranha barriguda quer ver meu fim, até agachou para
certificar que o veneno permaneceria no queijo, um queijo delicioso... Hum! Um
delicioso e envenenado queijo. Hum!”.
Neto viu seu maço de
cigarros no chão, ao lado de suas calças e correu até ele pensando: “Veneno que
alivia por veneno que alivia antes aquele que mata mais devagar”, roeu papel
até chegar ao tabaco. Enquanto saciava seu vício olhava o maço e com
dificuldade identificou um rato e uma barata mortos. Ficou confuso com a visão.
Lembrou-se mais uma vez do livro que começou a ler, mas continuou a roer e
engolir tabaco... Desligou-se na nicotina até ser interrompido por gemidos
vindos da sala, eram suspiros masculinos de prazer. Curioso se aproximou da
porta e colou o olho na fresta por onde viu algo nojento: um senhor de
aproximadamente 60 anos sendo chupado por Madalena na sala de seu lar, no final
oposto do corredor. Neto ficou perplexo com o gosto ou desespero daquele
sujeito, ao fundo estava sua sogra, ela lia uma de suas revistas banais
enquanto esperava o fim da cena em completa indiferença. O sujeito levantou,
deixou alguns trocados sobre a televisão e caiu fora. Era a primeira vez que Neto
presenciava... Entretanto ele sabia que coisas assim aconteciam há anos em
baixo de seu nariz.
Madalena começou a
comercializar seu corpo há vinte e cinco anos, pouco depois de sua mãe. Com a
morte do marido, um vigarista que as sustentava aplicando pequenos golpes,
Neuza passou a fazer de tudo para manter certa “aparência”. O primeiro programa
de Madalena aconteceu cinco após seu casamento, seis meses depois de sua mãe
que a incentivou se valendo do entardecer da beleza juntamente com o fim de
suas ilusões amorosas e econômicas ao lado de Neto. A causa era nobre: as duas
deveriam sustentar futilidades como cosméticos, roupas e festinhas na esperança
de Madalena fisgar um partido melhor, mas como que por uma intervenção do além,
ela nunca conseguiu. Neuza ainda se vendia, mas mesmo atendendo a estranhezas
tinha poucos clientes, estava velha demais para o trabalho e seu marido, Paulo,
fazia marcação cerrada... Madalena se saia melhor devido à grande fama de seus
lábios, seus ótimos preços e a cegueira de Neto.
CAPÍTULO IV – A CARÁTER
“_É mãe! Eu podia estar
com qualquer um daqueles que a senhora e papai me apresentaram, todos viviam
aos meus pés.”, disse Madalena ao limpar a boca com um lenço: “Lembra mãe?
Atuávamos diante de toda elite! Eu, a senhora e o papai éramos um grupo teatral
e tanto! Como eu me divertia! Papai tinha todos os contatos, vocês me levavam
em todas as festas. Eu era jovem linda e cheia de ilusões... Sonhava com um
príncipe, viver num castelo... Tudo parecia que ia rolar... Mas...”.
“_Pobre paizinho...”,
Madalena prosseguiu enchendo os olhos de água, “Ficou tão feliz quando me casei
com Neto que pensou que podia descansar em paz... Faleceu crente em nosso
futuro de fartura...”.
Neuza com a feição
derrotada levantou seus olhos moldurados por rugas e verrugas e disse: “_Também
fiquei feliz com seu casamento, feliz demais pra muito pouco tempo de boa vida.
Foi lindo, parecia mesmo um conto de fada, ele era o mais rico, o mais jovem e
belo... Não sabíamos que ele era o mais idiota... Agora sou casada com um velho
mau humorado só para termos onde morar. O amor pareceu dar um presente, mas
pregou foi uma peça. Filha você escolheu o pior herdeiro do mundo!
Neto ouvia tudo sentido
sua mente esvaziar pacificamente ao tempo que o instinto selvagem aflorava...
Então grunhiu pensando: “Malditas sejam essas vadias! A velha queria que eu a
carregasse nas costa, mas me ferrei na vida e a nojenta se ferrou de tabela. O
pior é essa barriguda cretina que um dia amei: Cretina! Não dá o menor valor aos
meus dias de suor, prefere se iludir com as ambições de sua mãe que agora são
despretensiosas e ainda mais vulgares.”.
Neto se lembrou
vagamente de seus dezenove anos, a morte de seus pais em um terrível acidente
aéreo, as partidas de pôquer, o fortalecimento dos sindicatos, dívidas
explodindo poucos meses após seu luxuoso casamento, o naufrágio de suas
fábricas em um mar de corrupção e principalmente do grande golpe do qual foi
vítima.
Neto herdou, além de
fábricas, comércios e imóveis, uma rede de empresas chamada NENTI cuja produção
de tecnologias de comunicação era destinada exclusivamente ao governo. Dois
anos após a morte de João Donizete Mendonça Filho, o governo decidiu que não
iria mais fazer negócios com a NENTI, precisavam de um aliado maduro e
conservador, estavam prestes a aplicar um golpe de Estado e Neto acabava de se
casar com a filha de um casal de atores marginalizados, com ficha criminal e
ligados ao movimento socialista... As ações desabaram, a NENTI amanheceu com os
lucros reduzidos à zero, Neto se viu obrigado a vender o maior patrimônio que
seu pai construiu por uma mixaria para não ter maiores prejuízos... Logo no dia
seguinte o governo anunciou que voltariam a comprar da NENTI do Baronil, as
ações voltaram a valer milhões, o novo dono era um aliado político, um fantoche
do governo que seria dono de um grande canal de televisão. Neto não pode fazer
nada além de se lamentar e ironicamente, tornar-se um dos milhões de
telespectadores do império das comunicações que se ergueu a partir da ruína de
sua fortuna.
A mixaria que recebeu
pela venda da MENTI e por tudo mais que herdou era uma grana considerável, um
bom dinheiro que não foi suficiente para as perversões de consumo daquele
garotão acostumado à fortuna... Seu sogro acabara de falecer e o clima de
tristeza imperou em sua mansão, lembrava os difíceis tempos após a morte de
seus pais. Neto então fazia questão de bancar os caprichos exuberantes de
Madalena e de Neuza, e foi justamente essa droga que o ajudou a esquecer a
tragédia. Neto não trabalhava, vivia entre festas e cassinos, acreditava poder
viver de juros e aplicações. Sua mulher e sogra viciaram em consumir e
conseguiam gastar tanto quanto ele perdia no jogo. Mãe e filha ficavam
iluminadas ao fazerem compras assim como Neto se iluminava perdendo inúmeras
vezes, sendo enganado outras tantas e ganhando desprezíveis apostas como a
maioria dos viciados no jogo...
“_Odeio pensar no
passado”, disse Madalena enquanto limpava sêmen dos seus cabelos: “Não suporto
esse presente e muito menos imagino um futuro... Eu era linda, a miss Zona
Leste! Odeio a vida que tenho carregado por todos esses anos de pobreza ao lado
daquele derrotado.”.
Neto olhou seu corpo
medíocre enquanto teve um dos últimos de seus pensamentos humanos, algo que
abriu sua percepção para tudo que aquilo que ele até então nunca pode perceber:
“Puta que pariu! Merda! Sou um... Que loucura! Não pode ser real! Sou um mísero
e grande rato.”, em completo desespero correu por todos os cantos do quarto
procurando sair, era impossível. Então voltou para debaixo da cama, a fim de
esperar uma deixa para cair fora dali.
Madalena abriu a porta
pensando que seu marido tinha comido o queijo e havia agonizado envenenado,
Neto correu rumo à porta fazendo com que sua mulher gritasse ao tempo que
tentava esmagá-lo com uma pisada. Ele passou por ela sem dificuldades, mas não
esperava a vassourada que sua sogra lhe reservara, a velha acertou-o em cheio
na cabeça, no entanto Neto pode dar continuidade à fuga saindo ligeiro pela
porta da rua que o cliente de Madalena deixou entreaberta.
CAPÍTULO V – O
REENCONTRO CONSIGO MESMO
Neto correu feito louco
pelas ruas, era início de noite. A pancada na cabeça doía, contudo era a fome
que mais o atormentava. Ele correu até ficar fraco e tonto, estava novamente na
ruela, porém com muito pouca consciência. Correu para debaixo do velho caminhão
baú atraído pelo cheiro irresistível dos restos das sobras de mendigos,
meteu-se entre a sucata ali armazenada e chegou a um pútrido banquete: comeu
até ficar pesado demais para sair e caiu no sono...
Ainda era noite quando
Neto despertou, o sangue havia secado e estancou o corte, colorindo sua cabeça,
ele então saiu em busca de mais comida quando foi surpreendido por um predador
que surgiu sorrateiramente dentre as sombras. Era o gato preto, Neto correu
desesperado rumo à caçamba de lixo da ruela em busca de um novo esconderijo, o
gato o observou por alguns instantes lambendo os beiços, estava deslumbrado com
o tamanho do ratão, só então saiu em seu encalce. Neto poderia escapar, tinha
certa vantagem, mas viu um vulto escondido atrás da caçamba de lixo, era um
homem agachado e entre suas pernas tremulas estava a melhor e mais rápida
entrada para o novo esconderijo. Neto então parou, sustentou-se sobre as patas
traseiras, farejou o cheiro do medo exalando do homem e teve um intenso déjà
vu, tomado por uma súbita retomada de consciência percebeu que aquele homem
acuado e trêmulo que o encarava se tratava de si mesmo antes de sofrer a
mutação. “Como é possível?”, perguntou-se, entretanto, a tal altura, não
existia outra opção a não ser tentar esquivar de si mesmo para se esconder em
baixo da caçamba de lixo. Neto virou rapidamente a cabeça e viu o predador se
aproximando, saltou e avançou em direção a caçamba. Quando pensou ter se
livrado de si mesmo sentiu uma poderosa pancada no focinho e voou de costas rodeado
pelo sangue que explodiu de sua boca, em seguida sentiu dentes afiados cravando
em sua nuca, viu seus olhos de homem se enchendo de satisfação e mais nada.
--- FIM ---
O DESERTO DE SI
Luaesol pisca... Ao abrir seu olho simplesmente se vê em um deserto junto com outras pessoas. Está preso em uma imensidão repleta de horizontes, e talvez por isso, não se pergunta o motivo de tal cárcere.
No final de todos os horizontes ele vislumbra imensas dunas que se desfazem e refazem umas sobre as outras numa fabulosa dança com o vento. Ainda atordoado tem seu primeiro pensamento no deserto: “Meus pontos de referencia são móveis, inconstantes... Que rumo tomar?”.
Luaesol assiste pessoas saindo atrás de líderes e depois de muito andar em círculos resolve seguir um líder. Acredita que o ele sabe para onde vai. Alimenta-se da confiança que deposita no seu líder e caminha por um longo tempo atrás dessas pessoas. É o ultimo da fila, anda completamente desligado, segue um líder que nunca vê... É assim até o dia em que o líder subitamente cai morto e todos param. A areia rapidamente encobre o cadáver e logo algumas pessoas voltam a caminhar em círculos. Luaesol sente suas energias exauridas, alguns já deitam no chão se entregando a única certeza. Então surge um novo líder, esse toma o caminho contrario.
Frente à situação Luaesol decide fazer o que viu raras pessoas fazerem durante o tempo em que seguiu em procissão: Caminhar na imensidão da planície tomando um singular caminho.
Segue um caminho sem rumo certo... “De que adiante criar ilusões quanto a um ponto de referencia se eles são dunas itinerantes”
Luaesol ruma às grandes dunas, cada dia uma nova formação de dunas se apresenta junto aos horizontes ou horizontes novos se apresentam junto às dunas, é impossível precisar... “Só posso mesmo é continuar”, pensa enchendo seu coração de esperança. Os fortes ventos de areai encerram a noção de espaço e tempo. As dunas parecem sempre se afastar... Contudo ele não desiste, escolhe acreditar que ruma seu caminho mesmo não estando delineado e prossegue...
Alimenta-se de férteis pomares de silencio cortando a imensidão até ver outras pessoas vindo no sentido contrário. Ele não se surpreende quando pensa em voltar junto com elas, mas firma seus passos e encara aquele ambiente inóspito impulsionado por sua própria escolha e continua contra os ventos.
Mais adiante vê outro grupo, esse caminha a sua frente. Arrastam-se atrás de um acomodado líder. Luaesol não se preocupou em ultrapassá-los: “Não preciso vencê-los, não posso ser derrotado, pois não busco a vitória”, pensa enquanto os observa. Enfim ele resolve correr e ultrapassa-los, aquela visão já o incomoda e também está curioso sobre quem seria aquele que guiava pessoas naquele rumo. Passa e antes de reparar no líder o segundo homem da fila o segue e em seguida todos, exceto o atual líder que parece estar em uma espécie de transe de liderança onde perdeu seus horizontes acomodando-se em simplesmente guiar... O Pobre líder só percebe que perdera seus seguidores quando olha para traz a fim de saciar sua sede e não os vê... Então sai em arrancada...
No final de todos os horizontes ele vislumbra imensas dunas que se desfazem e refazem umas sobre as outras numa fabulosa dança com o vento. Ainda atordoado tem seu primeiro pensamento no deserto: “Meus pontos de referencia são móveis, inconstantes... Que rumo tomar?”.
Luaesol assiste pessoas saindo atrás de líderes e depois de muito andar em círculos resolve seguir um líder. Acredita que o ele sabe para onde vai. Alimenta-se da confiança que deposita no seu líder e caminha por um longo tempo atrás dessas pessoas. É o ultimo da fila, anda completamente desligado, segue um líder que nunca vê... É assim até o dia em que o líder subitamente cai morto e todos param. A areia rapidamente encobre o cadáver e logo algumas pessoas voltam a caminhar em círculos. Luaesol sente suas energias exauridas, alguns já deitam no chão se entregando a única certeza. Então surge um novo líder, esse toma o caminho contrario.
Frente à situação Luaesol decide fazer o que viu raras pessoas fazerem durante o tempo em que seguiu em procissão: Caminhar na imensidão da planície tomando um singular caminho.
Segue um caminho sem rumo certo... “De que adiante criar ilusões quanto a um ponto de referencia se eles são dunas itinerantes”
Luaesol ruma às grandes dunas, cada dia uma nova formação de dunas se apresenta junto aos horizontes ou horizontes novos se apresentam junto às dunas, é impossível precisar... “Só posso mesmo é continuar”, pensa enchendo seu coração de esperança. Os fortes ventos de areai encerram a noção de espaço e tempo. As dunas parecem sempre se afastar... Contudo ele não desiste, escolhe acreditar que ruma seu caminho mesmo não estando delineado e prossegue...
Alimenta-se de férteis pomares de silencio cortando a imensidão até ver outras pessoas vindo no sentido contrário. Ele não se surpreende quando pensa em voltar junto com elas, mas firma seus passos e encara aquele ambiente inóspito impulsionado por sua própria escolha e continua contra os ventos.
Mais adiante vê outro grupo, esse caminha a sua frente. Arrastam-se atrás de um acomodado líder. Luaesol não se preocupou em ultrapassá-los: “Não preciso vencê-los, não posso ser derrotado, pois não busco a vitória”, pensa enquanto os observa. Enfim ele resolve correr e ultrapassa-los, aquela visão já o incomoda e também está curioso sobre quem seria aquele que guiava pessoas naquele rumo. Passa e antes de reparar no líder o segundo homem da fila o segue e em seguida todos, exceto o atual líder que parece estar em uma espécie de transe de liderança onde perdeu seus horizontes acomodando-se em simplesmente guiar... O Pobre líder só percebe que perdera seus seguidores quando olha para traz a fim de saciar sua sede e não os vê... Então sai em arrancada...
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